quarta-feira, 13 de novembro de 2019

          Olá meus queridos e queridas, sou o poeta Júlio Dalvorine e hoje vou falar sobre um assunto que julgo de extrema importância para quem pretende ter uma visão mais analítica do ato de ser poeta e de todo o processo inspiratório por que passam esses visionários da arte dos versos.

                                                         A CRIAÇÃO POÉTICA

        A natureza e o significado do ato criador do poeta tem constituído, desde a antiguidade helênica, objeto de aturada reflexão por parte de filósofos, psicólogos e críticos e por parte dos próprios poetas. Para alguns, o ato criador apresenta-se como um fato racionalmente explicável; para outros, aparece como insondável mistério, cujas raízes se perdem no mais recôndito da alma humana ou no impenetrável dos segredos divinos.
        Pretender fixar as linhas de força mais profundas e mais secretas do processo criador é empresa aleatória, mas possuímos elementos que permitem pelo menos um conhecimento descritivo deste mesmo processo: as reflexões e confissões dos próprios criadores, as revelações proporcionadas muitas vezes pela análise das próprias obras poéticas, as cogitações de estetas e de filósofos, os dados fornecidos pelas ciências psicológicas. Uma forte ambiguidade e um esfíngico segredo, porém, hão de envolver sempre a criação poética. Basta apontar um problema para o qual ainda há pouco o grande esteta inglês Harold Osborne chamava a atenção: "todos os fenômenos característicos da inspiração são descritos em termos idênticos pelos bons e pelos maus artistas; e nenhuma investigação psicológica, por mais penetrante que seja, conseguiu discernir as diferenças entre os processos mentais que acompanham a criação de uma obra mestra e as inspirações de um aprendiz de terceira ordem".
        Em primeiro lugar, vamos analisar um aspecto fundamental da criação poética e que se relaciona, podemos dizer, com a ontologia de toda a obra literária.
       Até ao século XVIII, considera-se que toda a criação poética assenta na imitação de uma realidade, de uma natureza interior ou exterior. Na obra de Platão e de Aristóteles, matriz de tantos princípios que tem informado a arte ocidental, encontram-se as primeiras elaborações teor´ticas da concepção imitativa ou mimética da poesia, embora o conceito de mimese em Platão não coincida com idêntico conceito em Aristóteles.
        Em Platão, o vocábulo mimesis apresenta múltiplas gradações de sentido, embora nesta diversidade de acepções possamos descortinar dois significados fundamentais: no livro X da república, a mimese é considerada como um "divertimento, não uma coisa séria", através da qual o artista reproduz a aparência -- não a verdade profunda -- das coisas e dos seres; no Crátilo, a mimese é considerada como decorrente da exigência humana de exprimir por imagens a realidade circundante e, enquanto meio suscetível de apreender as idéias presentes nas coisas, é-lhe atribuído um valor simbólico gnosiológico. É indubitável, todavia, que é o conceito primeiramente referido de mimese que ocupa um lugar central na estética platônica, constituindo mesmo, como ficou dito, um dos elementos determinantes da condenação a que o filósofo sujeita a poesia na República. O pintor, o escultor ou o poeta estão afastado três degraus da verdade e qualquer deles é apenas o terceiro poietes, pois o primeiro é Deus, que criou, por exemplo, a ideia de cama, o segundo é o artífice que fabricou a cama, e o terceiro é enfim o artista que representa esta mesma cama.
         Em Aristóteles, o conceito de mimese desempenha um papel muito importante, quer na caracterização da natureza da poesia, quer na justificação desta última. Na gênese da poesia, segundo Aristóteles, encontra-se a tendência da imitação, congênita no homem: "Parece haver, em geral, duas causas, e duas causas naturais, na gênese da poesia. Uma é que imitar é uma qualidade congênita nos homens, desde a infância (e nisso diferem dos outros animais em serem os mais dados à imitação e em adquirirem, por meio dela, os seus primeiros conhecimentos); a outra, que todas apreciam as imitações". A imitação poética incide sobre "os homens em ação", sobre os caracteres (ethe), as suas paixões (pathe) e as suas ações (praxeis0. Esta imitação, porém, não é uma literal e passiva representação dos aspectos sensíveis da realidade, pois a mimese poética apreende o geral presente nas coisas particulares e por isso mesmo a poesia se aparenta com a filosofia. O poeta é a causa que capta a forma existente nas coisas naturais e que, através dos meios que lhe são próprios, representa essa forma: "na imitação, segundo as palavras de Richard McKeon, o artista separa determinada forma da matéria com que está associada na natureza -- não, todavia, a forma substancial, mas certa forma perceptível através da sensação -- e une-a de novo à matéria da sua arte, o meio por ele usado".
         Apesar das diferenças profundas que distinguem as doutrinas da mimese em Platão e em Aristóteles, um elemento fundamental é comum a ambas as teorias: a noção de que toda a obra poética -- como toda a obra de arte -- tem de manter uma relação de semelhança e de adequação com uma realidade natural já existente.
         O dito de Simônides, difundido por Plutarco, de que a "pintura é poesia muda e a poesia pintura falante", e uma célebre fórmula de Horácio, erroneamente interpretada -- ut pictura poesis --, contribuíram para enraizar a crença de que a essência da poesia consistia na imitação da natureza. Trata-se, aliás, de uma concepção estética que facilmente se impunha aos espíritos, sobretudo em estéticas informadas por filosofias do objeto, como foram em geral a filosofia grega e as filosofias ocidentais dela derivadas.
        Até ao século XVIII, a poesia é por conseguinte definida sempre em termos de imitação ou outros congêneres, como "cópia", "imagem", etc. Piccolomini, importante crítico italiano do século XVI, escreve que "a poesia não é outra coisa senão imitação não só de coisas, ou naturais ou artificiais, mas principalmente de ações, de costumes e de afetos humanos" e Tasso afirma que e "poesia é uma imitação, realizada em verso, de ações humanas, feita para ensino da vida". Um crítico e poeta francês do século XVII, Colletet, explica que "a poesia é uma viva representação das coisas naturais... O que é o poema épico senão uma perfeita imitação das ações generosas dos grandes heróis? A comédia um espelho dos costumes do tempo, senão uma imagem da verdade, e numa palavra, senão uma bela e excelente imitação da vida?" A comparação do ato criador com o espelho que reflete a realidade, é comumente usada desde a Renascença, e esta analogia revela bem o ideal mimético assinalado à arte, embora geralmente nunca se defenda o princípio de que a obra artística deve constituir uma imagem exata da realidade (na estética clássica, por exemplo, a imitação da natureza caracteriza-se pelas suas dimensões idealistas).
          Para finalizar este artigo de hoje, achei de bom tamanho citar um trecho um pouco pitoresco segundo minha humilde opinião: "Platão reprovava na poesia a sua própria origem e o seu fundamento: o poeta, como se lê no diálogo Íon, não cria o poema mediante o recurso a um saber idêntico ou comparável ao do sábio. o poeta, coisa leve, alada e sagrada, cria num estado de entusiasmo, de exaltação e de loucura, pois uma força Divina, como um fluxo magnético, transcorre da Musa para o poeta e deste para o rapsodo e para os seus ouvintes. este estado de delírio e de êxtase não é consentâneo com a autêntica sabedoria. Além disso, a imitação poética, não constitui uma atividade reveladora da verdade, pois a poesia, sendo imitação de uma imitação, representa algo distanciado três degraus da verdade do ser". Acredito na minha opinião, que a poesia é alguma coisa espiritual e extremamente autêntica; e que nem sempre é fruto de uma imitação da imitação!

(Poeta: Júlio Dalvorine)
    

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